A Vista e o Coração
(english version below)
O que aconteceu antes
A Ana
Madureira tem um trabalho de qualidade invulgar em todas as áreas a que se
dedica - teatro, música e desenho. Apesar disso é pouco conhecida talvez porque
promover a carreira não é uma prioridade na sua vida. Esta falta de estratégia
(digamos) comercial, é uma das coisas que admiro e que, de algum modo, me
parece acrescentar leveza e espessura ao que faz.
Eu gosto
muito dos desenhos dela e há muito que a desafio para fazer uma exposição aqui,
na Casa das Virtudes, onde viveu entre 2010 e 2014 e onde deixou ficar alguns
deles.
No ano
passado comecei por lhe encomendar um desenho para a entrada do prédio sobre
uma história de amor, que eu imaginava a espalhar-se pelas paredes acima, como
uma praga. Mas afinal concordámos não ser aquele o espaço adequado e optámos
pela organização de uma exposição no 1º andar que, entretanto, seria
reabilitado. Eu queria ter tudo preparado um mês antes para fazer uma
divulgação exaustiva da exposição. Tencionava esmerar-me e fazer a melhor
produção de todas as que realizei na minha longa e peculiar carreira de
produtora/programadora. Mas os tempos da Ana Madureira não eram os meus,
estávamos desfasadas, e as minhas fantasias e entusiasmo foram- se esboroando.
No fim de Fevereiro acertámos que não haveria desenhos novos mas antes uma
selecção do que já tinha sido feito. Fiquei contente com este acerto de
desejos. Mas o tempo foi passando, deixei de ter notícias novamente e senti-me
desconfortável a lembrar prazos. Acabei por esquecer-me da exposição e marquei
, com o arquitecto Luís Peixoto, a data para inaugurar as obras de
reabilitação. E foi nesse mesmo dia que a Ana Madureira reapareceu e o que
resultou deste encontro está, agora, à vista de todos.
Há muitos
anos que acompanho processos de criação artística e nada que me dá mais prazer
do que esta cumplicidade. A arte expande a realidade, cria mundo e , sobretudo,
alimenta-nos a alma. Aí está porque apoiar artistas nunca é uma acção
completamente desinteressada - há uma troca em que todos ficam a ganhar. E é
isso que (apenas e) verdadeiramente (me) interessa.
Segundo
Maria Filomena Molder quando diante de uma obra, “as associações que fazemos
são também de natureza expressiva e indicam qualquer coisa da experiência
humana em nós. Há um acesso inesperado, por interposta pessoa, à nossa vida”
(1). Esta parece-me uma resposta certeira ao porquê do meu fascínio pelo
trabalho desta artista – os seus desenhos abrem um acesso inesperado à minha
própria vida.
Sobre os desenhos
Não sei
porquê mas tenho a impressão que os desenhos lhe surgem espontaneamente, um
pouco como as plantas silvestres irrompem pelos passeios da cidade. E imagino a
Ana Madureira a dar-lhes as boas vindas com o mesmo sorriso simples, generoso e
atento com que recolhe e transfigura os objectos abandonados, que vai
encontrando pelas ruas e acaba por acolher debaixo do seu tecto.
No seu
universo artístico tudo está ligado. Não há barreiras entre o mundo animal e o
dos homens - há pessoas com cara de lobo e bodes com corpo humano. Também não
há separação entre os aspectos nobres e comezinhos da vida – “uma mulher traz
na mala vontade de amor e os legumes da sua avó”- escreve ela algures. Essa
fluidez, proporcionada pela desconsideração de muros, é transmitida de forma silenciosa
e eficaz. Há uma intensidade dramática, presente em tudo, que parece surgir da
tensão entre a crueza (e o que há de sombrio) e a sensibilidade, o possível e o
impossível, a fantasia e o sofrimento. E o movimento está sempre lá, mesmo na
imobilidade das figuras.
Tenho a
impressão, porventura errada, que nos seus desenhos, predominam as mulheres e
os animais. Muitas das figuras têm uma aparência áspera, rude, em que o sexo
pode surgir escancarado. Têm um ar desconfiado misturado com qualquer coisa que
a miséria vai incrustando, em tudo o que toca. Tudo isto me parece resultar de
um contacto íntimo com os aspectos mais violentos da vida, que estes personagem
aparentam conhecer bem. Geralmente têm os olhos muito abertos, como as crianças
que observam tudo, muito atentas, mas silenciosas e indefesas. Sinto estas
figuras bem enraizadas, são fortes e intensamente verticais. Muitas têm uma
atitude de desafio, fazendo frente à vida. Talvez o que me fascina seja esse
poder de enfrentamento, sem hesitações. Mas ao mesmo tempo estão carregadas de
ironia, um humor corrosivo, por vezes negro, que impregna tudo.
Desconcertantes, partem para a luta mas vão armadas com uma gargalhada muda,
que se apodera da nossa alma. Mas há desenhos intensamente poéticos, que nos tocam
da mesma forma que os gemidos de uma guitarra portuguesa. Por vezes há
personagens que se desdobram, a metade esquerda separa-se, total ou
parcialmente, da metade direita, como alguém que fala de si para si.
Também há
uns mini-livros que a Ana Madureira costura, na sua máquina eléctrica, para
ligar as poucas folhas. Mas cada desenho é uma história concisa e intensa que
fala sobre a vida no que tem de desconcertante e de violento mas também das
linhas de fuga – o humor, a fantasia e a poesia - que a iluminam.
A
utilização da cor corrobora tudo isto. O preto é, por vezes, acompanhado por
cores sempre em tons suaves, sobretudo o vermelho, a cor que o sangue tem. Talvez a escuridão
só seja suportável se puder ser interrompida (?).
Graça
Passos | São
Brás de Alportel, 17 de Abril,2017
(1)“O que é
que a Louise Bourgeois sabe que eu não sei”, em “Rebuçado Venezianos”, 2016,
Relógio D’Água, Lisboa.
Biografias
Ana Madureira
Nasceu em
1980. Depois de terminar a licenciatura em Direito, mergulhou definitivamente
na formação em teatro, dança e clown. Primeiro no CITAC, em Coimbra,
depois na companhia Circolando. A música, a ilustração e a escrita
foram desenvolvidas em contextos de experimentação autodidacta, a solo ou em
interacção com outros artistas. Na Holanda integrou o colectivo
musical Gudubik. Em residências artísticas no Instituto Grotowski, alargou
a sua ideia e experiência de canto, voz e presença teatral. Durante dois
anos esteve no c.e.m- Centro em Movimento, em Lisboa, onde trabalhou com Sofia
Neuparth e Ana Rita Teodoro. Depois disso, começou a criar com a
comunidade: Noveloteca, convite de Madalena Victorino; Guia-me,
convite da Casa das Brincadeiras; teus imaginarius meus, convite do
Imaginarius 2012; Pé no mar, cabeça na terra, convite do Festival
Rádio Faneca 2014, Ílhavo- são projectos que reúnem em livros de autor,
instalações, visitas guiadas e ateliers de formação, o seu olhar de ilustradora
e actriz sobre as histórias das pessoas. Das suas criações de teatro, destaca
os solos CabraCega (2012) e Dama Pé de Mim (2016).
Com Vahan Kerovpyan, músico, actor, ilustrador parisiense, criou Lav
Lur, um dueto musical-teatral.
É membro do
Clown Laboratori Porto, plataforma de formação e experimentação na arte do
palhaço. Na sua prática artística e pedagógica procura trabalhar o corpo
aberto, capaz de escutar e agir a partir do instinto e do momento presente.
Graça Passos
(Faro,1958) .
Bióloga, professora, produtora cultural/programadora e cidadã activa.
Interessa-se por arte contemporânea e agricultura biológica. Dirigiu o CENTA
entre 1989/2009. Fundou e integrou várias OSC culturais e ambientais,
actualmente pertence à PTF-Plataforma Transgénicos Fora e ao Tavira em
Transição.
evento: https://www.facebook.com/events/641624989381747/
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(eng)
The View and The Heart
Ana
Madureira has an unusual quality to every area she works in - theatre, music
and drawing. Despite this she is little known, maybe because promoting her
career os not one of her life priorities. This lack of "commercial
strategy" is one of the things I admire,and one which, somehow, seems to
add lightness and density to what she does.
I like her
drawings very much and it has been for a while now that I have been challenging
her to make an exhibition here in Casa das Virtudes, where she lived between
2010 and 2014 and where she left some of her works.
It started
with me ordering her a drawing for the building entrance - a drawing about a
love story, which I imagined spreading high up the walls like a plague. Finally,
we agreed that entrance hall wasn't a suitable space and decided upon an
exhibition that would take up the first floor - which, meanwhile, would be
rehabilitated. I wanted to have everything prepared a month in advance, so that
I could advertise the event exhaustively. I intended to dedicate myself to
pulling the best production yet in my long and peculiar producer/programmer
career. But my time and Ana’s time didn't match, we were desynchronized, and so
my fantasies and enthusiasm were crumbling. In the end of February we decided on
a selection from the work that has been done up to that point instead of new
drawings. I felt happy about this settlement of desires. But the time went on
and I stopped having any news from Ana again and felt uncomfortable while
remembering deadlines. Eventually I forgot about the exhibition and settled an
inauguration date for the rehabilitation works. On the same day, Ana Madureira
reappeared and what has happened due to this encounter now stands before
everybody’s eyes.
I have been
following artistic creation processes for many years now and there is nothing
that pleases me as much as this complicity. Art expands reality, creates a
world and, above all, it nourishes one’s soul.
Here's the
reason why supporting artists is never a totally selfless act - there is an
exchange, in which everybody wins. And that is the (only) thing that has the
true meaning (to me).
According
to Maria Filomena Molder, when facing a work of art , “the associations we make
are also of expressive nature and indicate something of our human experience.
There is an unexpected access, through the intermediate person, to our own life”.
This seems to be an accurate answer when questioning my own fascination with
this artists' work - her drawings open up an unexpected access to my own life.
About the
drawings
I don't
know why, but I have an impression that the drawings appear to her
spontaneously, slightly similar to the wild flowers that break out through city
sidewalks. And I can imagine Ana Madureira welcoming them with the same simple,
generous and attentive smile that she has while gathering and transfiguring the
abandoned objects which she keeps finding and sheltering under her roof.
In her
artistic universe everything is connected. There are no barriers between the
animal and the human worlds - there are people with wolf faces and goats with
human bodies. There is also no separation between the noble and light aspects
of living - "a woman brings will to love and vegetables from her
grandmother in her purse", she writes someplace. This fluidity, provided
by disregard for punches, is transmitted silently and effectively. There is a dramatic
intensity, present in everything, which seems to emerge from the tension
between the rawness (and what darkness there is) and the sensibility, the
possible and the impossible, the fantasy and the suffering. And the movement is
always there, even in the immobility of the figures.
I have an
impression, perhaps a wrong one, that in her drawings women and animals are
predominant. Many of the figures have a harsh, rough appearance - where the sex
can appear wide open. They have a suspicious look mixed with something that
misery keeps embedding in everything it touches. All of this seems to result
from an intimate contact with the more violent aspects of life, which these
characters appear to know well. Generally they have wide open eyes, like
children who are observing everything, very attentive, but silent and
defenseless. I feel these figures well rooted, they're strong and intensely
vertical. Lots of them have a challenging attitude, face-to-face with life.
Perhaps what fascinates me is this power to cope, with no hesitations. At the
same time they're filled with irony - corrosive, sometimes dark humor, which impregnates
everything. Disconcerting, they go to the fight but they're armed with a mute
guffaw that catches hold of ones' soul. There are also intensely poetic
drawings, that touch us in the same way the moans of a Portuguese guitar do. At
times there are characters that unfold - the left half separates itself, either
totally or partially, from the right side, like one talking to oneself.
There are
also the mini-books that Ana Madureira sews on her electric sewing machine in
order to connect the scarce sheets. But every drawing is a concise and intense
story that talks about life, about the disconcert and the violence, but also
about the vanishing points - the humor, the fantasy and the poetry - which
light her up.
The use of
colors corroborate all of these. Black is sometimes accompanied by colors always in smooth tones, especially by red - blood color. Perhaps darkness is only bearable if it
can be interrupted(?).
Graça Passos | São Brás de Alportel, 17 de Abril,2017
Biographies
Ana Madureira
Ana was
born in 1980. After finishing her bachelor studies in Law, she definitively
dived into theatre, dance and clown studies. First in CITAC in Coimbra and
after in the Circolando company. Music, illustration and writing were developed
in experimental, self-taught contexts, in solos or while interacting with other
artists. She integrated a musical collective called Gudubik in Holland. As a
resident artist in the Gotowski Institute she widened her ideas of and
experience in singing, voice and theatrical presence. She spent two years at
c.e.m.- Centro em Movimento in Lisbon, where she worked with Sofia Neuparth and
Ana Rita Teodoro. After this she started to create with the community:
Noveloteca, with invitation from Madalena Victorino; Guia-me, invitation from
Casa das Brincadeiras; teus imaginarius meus, invitation from Imaginarius 2012;
Pé no mar, cabeça na terra (foot in the sea, head on the earth), invitation
from Rádio Faneca Festival 2014, Ílhavo - these are projects that reunite her
illustator and actress views on peoples' stories in artist books,
installations, guided tours and educational workshops. From her theatre
creations she highlights solos CabraCega (2012) and Dama Pé de Mim (2016).
Alongside Vahan Keropyan - parisian musician, actor and illustrator - Lav Lur
was created, a musical and theatrical duet.
She is a
member of Clown Laboratori Porto, an educational and experimental platform on
clown art. In her pedagogical and artistical practices she seeks for an open
body work, body that is capable of listening and acting from the instinct and
from the present moment.
Graça
Passos
(born in
Faro,1958)
Biologist,
professor, cultural producer/programmer and an active citizen. She is
interested in contemporary arts and organic agriculture. She directed CENTA
(Center for Studies on New Artistic Tendencies) between 1989 and 2009. She has
funded and integrated several environmental and cultural NGO's, she is
currently a part of PTF - Platform Transgenic Out and Tavira in Trasitioning.
event: https://www.facebook.com/events/641624989381747/